quinta-feira, 10 de outubro de 2024

A TORTURA DA ESPERANÇA em Quadrinhos — Villiers de l’Isle-Adam


VILLIERS DE L’ISLE-ADAM

Philippe-Auguste-Mathias, conde de Villiers de l’Isle-Adam (1840-1889), pertencia a uma das famílias mais antigas da aristocracia francesa; contava entre seus antepassados um marechal da França e o primeiro dos grão-mestres da Ordem de Malta. Da antiga ilustração apenas lhe restava o esplendor do nome: passou a vida em profunda miséria, suportada, aliás, com orgulho e dignidade. “A pobreza colou-se-lhe aos ossos como a própria pele, e seus melhores amigos, seus admiradores mais fervorosos nunca puderam arrancar-lhe esse vestuário natural.”

Era Villiers de l’Isle-Adam um exilado dentro do seu século; vivia em estado de perpétua revolta contra a realidade. Conquanto houvesse abandonado a poesia depois de um único volume, sua obra influenciou fortemente os poetas simbolistas, que viam nela um protesto contra o realismo. A atmosfera de mistério, de sonho e de alucinação que emana de seus contos, romances e dramas dominava-lhe também a personalidade. Esta exerceu nos seus amigos estranha fascinação, como o demonstram os versos que lhe consagrou Verlaine em uma de suas “Dedicatórias”, e as reminiscências de Mallarmé, de uma solenidade e de um requinte hieráticos:

Sem embargo de sua importância na história literária, Villiers de l’Isle-Adam não conseguiu nenhuma popularidade em vida, e, morto, continua a ter um grupo de fiéis relativamente reduzido. Seus contos enchem vários volumes: Contos cruéis, Histórias insólitas, Novos contos cruéis, Histórias soberanas. Todos apresentam um todo inconfundível, apesar da variedade dos gêneros: sátiras ao progresso, histórias sobrenaturais, fantasmagorias e pesadelos, casos grotescos e absurdos, retratos de maníacos; em todos, por trás do estilo artisticamente equilibrado, sente-se uma tensão extrema, um exagero doentio, uma espécie de desequilíbrio íntimo.

***

A TORTURA DA ESPERANÇA









***

A TORTURA DA ESPERANÇA


— Oh! uma voz, uma voz, para gritar!...

Edgar Poe, “O poço e o pêndulo”


 


Sob os porões do Provisor de Saragoça, ao cair de uma tarde de outrora, o venerável Pedro Arbuez d’Espila, sexto prior dos dominicanos de Segóvia, terceiro Grande-Inquisidor de Espanha — seguido de um fra198 redentor (verdugo-mor) e precedido de dois familiares do Santo Ofício, estes empunhando lanternas, desceu a um calabouço perdido. Rangeu a fechadura de uma porta maciça: penetraram um mefítico in-pace, onde a claraboia da parte superior deixava vislumbrar, entre argolas chumbadas às paredes, um cavalete enegrecido de sangue, um esquentador, um cântaro. Sobre uma camada de esterco, e sustentado por peias, a golilha de ferro no pescoço, via-se sentado, com ar de espanto, um homem maltrapilho, de idade já indistinta.

Esse prisioneiro não era outro senão o rabi Aser Abarbanel, judeu aragonês, que — acusado de usura e de impiedoso desdém aos pobres — vinha sendo, desde mais de um ano, cotidianamente submetido a torturas. Entretanto, como “a sua cegueira fosse tão dura quanto o seu couro”, recusara-se à abjuração.

Orgulhoso de uma filiação muitas vezes milenária, ufanando-se de seus remotos antepassados — pois todos os judeus dignos de tal nome são ciosos do próprio sangue —, ele descendia talmudicamente de Otoniel, e, por conseguinte, de Ipsiboë, esposa deste último juiz de Israel: circunstância que contribuíra para mantê-lo sem desfalecimentos no auge dos incessantes suplícios.

Assim, foi com os olhos cheios de lágrimas, pensando que essa alma tão firme se furtava à salvação, que o venerável Pedro Arbuez d’Espila, aproximando-se do rabino tremente, pronunciou as seguintes palavras:

— Regozijai-vos, filho meu: vossas provações terrestres vão ter fim. Se, em face de tamanha obstinação, eu tive de permitir, com o coração em pranto, que se empregassem muitos rigores, minha tarefa de correção fraterna tem os seus limites. Sois a figueira intratável que, tantas vezes encontrada sem fruto, se arrisca a ficar estéril... porém só a Deus cumpre deliberar acerca de vossa alma. Quem sabe se a infinita clemência não luzirá para vós no instante supremo? Devemos esperá-lo! Há exemplos... Assim seja! — Portanto, descansai em paz esta noite. Amanhã, tomareis parte no auto de fé: vale dizer que sereis exposto ao quemadero, braseiro premonitório da eterna chama: ele só queima, bem o sabeis, meu filho, a distância, e a Morte leva pelo menos duas horas (às vezes três) para chegar, em virtude dos panos molhados e gelados com que nós temos o cuidado de preservar a fonte e o coração dos holocaustos. Sereis 43 apenas. Considerai que, colocado no último lugar, tereis o tempo necessário para invocar a Deus, para oferecer-lhe esse batismo de fogo que é do Espírito Santo. Esperai, pois, na Luz, e adormecei.

Ao terminar esta prática, d. Arbuez, tendo, com um sinal, feito desacorrentar o infeliz, abraçou-o ternamente. Depois foi a vez do fra redentor, que, baixinho, rogou ao judeu lhe perdoasse o que ele o fizera padecer no intento de o redimir; depois, abraçaram-no os dois familiares, cujo beijo, através das suas cogulas, foi silencioso. Concluída a cerimônia, deixaram o cativo, sozinho e atônito, nas trevas.

Com a boca seca, a face idiotizada pelo sofrimento, o rabi Aser Abarbanel considerou, desde logo, sem atenção precisa, a porta fechada. — “Fechada?...” No íntimo de sua alma, em meio aos seus confusos pensamentos, esta palavra despertava um devaneio: é que ele entrevira, um instante, o clarão das lanternas na fenda de entre as muralhas daquela porta. Uma ideia mórbida de esperança, suscitada pela prostração do cérebro, comoveu-lhe o ser. Arrastou-se em direção à insólita coisa aparecida! E, muito suavemente, deslizando um dedo, com demoradas precauções, na pequena abertura, puxou sobre si a porta... Que estupefação! por um acaso extraordinário, o familiar que o refechara dera a volta à grossa chave um pouco antes do baque de encontro às couceiras de pedra! De maneira que, não havendo a enferrujada lingueta entrado na porca do parafuso, a porta rodou novamente no vão.

O rabino arriscou um olhar à parte de fora.

Graças a uma espécie de escuridão lívida, distinguiu, no primeiro instante, um semicírculo de paredes terrosas, varadas por espirais de degraus — e, dominando, diante dele, cinco ou seis degraus de pedra, uma espécie de pórtico negro que dava acesso para um vasto corredor, do qual só era possível entrever, de baixo, os primeiros arcos.

Estirando-se, pois, rastejou até o rés desse limiar. — Sim, era sem dúvida um corredor, mas extremamente longo! Uma luz lívida, um clarão de sonho o iluminava: lâmpadas, suspensas das abóbadas, azulavam, a espaços, a cor embaciada do ar: o fundo longínquo era apenas sombra. Nem uma porta, lateralmente, em toda a extensão! Somente de um lado, à sua esquerda, respiradouros, de grades cruzadas, em desvãos da parede, deixavam passar um crepúsculo — que devia ser o da tarde, em virtude das estrias vermelhas que, de longe em longe, cortavam o lajeado. E que silêncio medonho!... Entretanto, além, nas profundezas daquelas brumas, uma saída podia dar para a liberdade! A vacilante esperança do judeu era tenaz, pois que era a última.

Assim, sem hesitar, arriscou-se sobre as lajes, cosendo-se à parede dos respiradouros, forcejando por se confundir com a tenebrosa cor das longas muralhas. Avançava lento, arrastando-se de bruços — e sopitando o ímpeto de gritar quando uma chaga, recém-avivada, o pungia.

Súbito, o rumor de uma sandália que se aproximava chegou-lhe aos ouvidos no eco dessa aleia de pedra. Um estremecimento sacudiu-o todo, a ansiedade o sufocava; escureceu-se-lhe a vista. Vamos! estava tudo acabado, certamente! Encolheu-se, de cócoras, num desvão, e, com a morte na alma, esperou.

Era um familiar apressado. Passou rápido, empunhando um arranca-músculos, com a cogula abaixada, e desapareceu. A comoção de que o rabino acabara de experimentar o aperto havia-lhe como que suspendido as funções vitais, deixando-o, cerca de uma hora, impossibilitado de fazer um movimento. No receio de que se lhe agravassem as torturas, caso fosse apanhado, veio-lhe a ideia de retornar ao seu calabouço. Mas, no íntimo da alma, a velha esperança lhe cochichava esse divino talvez, que reconforta nas piores tribulações! Produzira-se um milagre! Já não havia dúvidas! E ele pôs-se de novo a rastejar para a evasão possível. Extenuado de sofrimento e de fome, trêmulo de angústias, avançava! — E aquele sepulcral corredor parecia alongar-se misteriosamente! E o rabino, sempre avançando, olhava sem cessar para a sombra, lá longe, onde devia haver uma saída salvadora.

Oh! oh! Outra vez o ruído de passos, agora, porém, mais lentos e mais sombrios. As formas brancas e negras, de longos chapéus de abas reviradas, de dois inquisidores, apareceram-lhe, emergentes do ar embaciado, lá no fundo. Conversavam em voz baixa e pareciam debater um ponto importante, pois as suas mãos se agitavam.

A essa visão, o rabino Aser Abarbanel fechou os olhos: bateu-lhe o coração a ponto de o matar; seus trapos foram penetrados de um frio suor de agonia; pasmado, imóvel, estendido ao longo da parede, sob a luz de uma lamparina, imóvel, implorava o Deus de Davi.

Ao chegarem diante dele, detiveram-se os dois inquisidores sob a claridade da lâmpada — por um acaso oriundo, sem dúvida, da sua discussão. Um deles, escutando o interlocutor, olhou casualmente o rabino! E, debaixo desse olhar, cuja expressão distraída no primeiro instante não compreendeu, julgava o desgraçado sentir as cálidas tenazes morderem-lhe ainda a pobre carne; ia, pois, voltar a ser uma queixa e uma chaga! Desfalecendo, sem poder respirar, as pálpebras a bater, tremia, ao aflorar daquelas vestes. No entanto — coisa ao mesmo tempo estranha e natural —, os olhos do inquisidor eram, a toda a evidência, os de um homem fundamente preocupado com o que vai responder, absorvido pela ideia do que ouve, estavam fixos — e dir-se-ia olharem o judeu sem o ver!

Com efeito, ao cabo de alguns minutos os dois sinistros discutidores prosseguiram seu caminho, a passos lentos, e sempre conversando em voz baixa, em direção à encruzilhada donde saíra o prisioneiro; NÃO O TINHAM VISTO!... De tal modo que, no horrível desconcerto das suas sensações, o rabino teve o cérebro atravessado por esta ideia: “Estaria eu morto, de sorte que não me viram?” Uma horrenda impressão arrancou-o da letargia: fitando a parede, bem próxima de seu rosto, cuidou ver, ante os seus, dois olhos ferozes que o espreitavam!... Sacudiu a cabeça para trás num transe desvairado e súbito, com os cabelos arrepiados!... Mas — não! não. Sua mão acabava de conhecer a realidade, tateando as pedras: era o reflexo dos olhos do inquisidor que ele ainda tinha nas pupilas, e que refrangera sobre duas manchas da parede.

Para a frente! Cumpria apressar-se em direitura a esse fim que ele imaginava (doentiamente, decerto) ser a libertação! em direitura àquelas sombras de que ele se achava apenas à distância de uns trinta passos. E continuou, mais depressa, sobre os joelhos, sobre as mãos, sobre o ventre, a sua via dolorosa; e dentro em pouco entrava na parte escura daquele corredor medonho.

De repente o miserável sentiu frio sobre as mãos, que apoiava nas lajes; isto provinha de uma forte corrente de ar que se insinuava por sob uma pequena porta em que terminavam as duas paredes. Meu Deus! se aquela porta desse para o mundo exterior! Apoderou-se de todo o ser do lastimável evadido uma vertigem de esperança! Examinava-a, de alto a baixo, sem lograr distingui-la nitidamente em virtude da escuridão que o cingia. Tateava: nenhum ferrolho, nenhuma fechadura. — Uma aldraba!... Levantou-se: a lingueta cedeu sob o seu polegar; a silenciosa porta rodou ante ele.

— ALELUIA!... — murmurou, num suspiro imenso, de ação de graças, o rabino, agora em pé na soleira, ante o que se lhe desvendava aos olhos.

A porta se abrira sobre os jardins, sob uma noite estrelada! sobre a primavera, a liberdade, a vida! Tudo isso dava para o campo próximo, prolongando-se no rumo das sierras, cujas sinuosas linhas azuis se perfilavam de encontro ao horizonte — ei-la, ali, a salvação! — Oh! fugir! Via-se a correr toda a noite sob aqueles bosques de limoeiros cujo perfume lhe chegava às narinas. Uma vez nas montanhas, estaria salvo! Respirava o bom ar sagrado; o vento reanimava-o, seus pulmões ressuscitavam! Ouvia, no seu coração dilatado, o "Veni foras" de Lázaro! E, para bendizer mais uma vez o Deus que lhe concedia tal misericórdia, estendeu os braços diante de si, erguendo os olhos ao firmamento. Foi um êxtase.

Nisto, julgou ver a sombra de seus braços voltar-se sobre ele mesmo; julgou sentir que esses braços de sombra o cingiam, o enlaçavam — e que ele era ternamente apertado a um peito. Realmente, um vulto alto se achava ao pé do seu. Confiante, baixou os olhos para esse vulto — e ficou ofegante, enlouquecido, os olhos apagados, trêmulos, as bochechas a inchar, e babando de estupefação.

Horror! estava nos braços do Grande-Inquisidor em pessoa, do venerável Pedro Arbuez d’Espila, que o contemplava, com os olhos cheios de grossas lágrimas e um ar de bom pastor ao encontrar sua ovelha tresmalhada!...

O sombrio sacerdote estreitava ao coração o desgraçado judeu com um impulso de caridade tão fervente que as pontas do cilício monacal picavam, sob a cogula, o peito do dominicano. E, enquanto o rabi Aser Abarbanel, com os olhos revolvidos sob as pálpebras, estertorava de angústia entre os braços do ascético d. Arbuez e compreendia confusamente que todas as fases da noite fatal não passavam de um suplício previsto, o da Esperança!, o Grande-Inquisidor, com um acento de pungente censura e o olhar consternado, murmurava-lhe ao ouvido, com hálito ardente e alterado pelos jejuns:

— Como, meu filho! Na véspera, talvez, da salvação... queríeis deixar-nos!

***

Introdução e conto extraído de: Mar de histórias: antologia do conto mundial: o realismo: volume 5 / Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai (tradução e organização). - 5.ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.

Desenhos não creditados. Fonte VIDAS ILUSTRES - Ano XII - N° 164 - 15 de junio de 1967. ("VILLIERS DE L'ISLE ADAM").—© Copyright, 1967 — México.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Mais visitadas (30 dias)